A rua dos Cataventos..
era rua dos
pombos...
quando estive aqui nos anos 70
MINHA MORTE nasceu quando eu nasci",
escrevia Mario Quintana em seu primeiro livro,
"A Rua dos Cataventos".
O verso ganha novos significados lido agora,
no centenário do poeta.
Poderia ser apenas uma verdade geral:
todos nós, é por certo,
começamos a morrer assim que passamos à existência.
Mas, num autor como Quintana -muito querido,
é como se os discretos acontecimentos de
sua biografia real nada mais fossem que o prefácio
de uma longa vida literária renovada toda
vez que alguém abre um livro seu.
Glória póstuma?
Não exatamente.
Mario Quintana tornou-se popularíssimo
desde os anos 70,
pelo menos; quando morreu,
em 1994, acho que já se vendiam
nas papelarias aquelas agendas
com frases suas, repetidas até enjoar.
Ao mesmo tempo,
Quintana é mais querido do que admirado,
e termos como "grandeza" e "profundidade"
não se associam à sua poesia, que de resto
não aspirava a tanto.
Mestre na comunicação instantânea com o
leitor e na arte de criar paradoxos
"naturalíssimos", sem sombra de esforço
mental, ele corria o risco
de ver o espontâneo, o elegante
e o corredio de sua arte inclinarem-se
na direção do açucarado e do mimoso:
A cada suspiro que dou,
o meu anjo da guarda perde
mais uma peninha da asa,
exala um parágrafo de
"Sapato Florido".
Mas os livros de Mario Quintana são lindos.
Começando com os sonetos de
"A Rua dos Cataventos", de 1940,
daí para as "Canções", de 1946,
"Sapato Florido" (poemas em prosa, 1948),
"O Aprendiz de Feiticeiro" (1950)
e "Espelho Mágico" (1951),
"A Rua dos Cataventos"
é, de algum modo, um livro de estréia mais seguro
de si mesmo do que seria
"O Aprendiz de Feiticeiro",
onde as sombras de Murilo Mendes,
Manuel Bandeira e Augusto Frederico Schmidt
distorcem um bocado a imagem do poeta.
O tom enfunado de "Cântico", por exemplo,
tem muito mais a ver com Schmidt
do que com o Mario Quintana de verdade:
"O vento verga as árvores, o vento clamoroso
da aurora...
/ Tu vens precedida pelos vôos altos,/
Pela marcha lenta das nuvens (...)".
E por aí vai.
Mesmo uma das mais belas imagens desse livro -
quando o autor escreve que um poema deve ser
"como um gole d" água bebido no escuro"-
sofre com os versos seguintes, que o recomendam
"Triste./ Solitário./ Único./
Ferido de mortal beleza."
Apesar de serem todos sonetos -
sinal de conservadorismo formal na década de 40-,
os poemas de "A Rua dos Cataventos" lidavam com a modernidade de forma mais pessoal, ao menos num aspecto.
A idéia, muito cara ao século 20, da anulação do
"eu" romântico, a vontade do poeta de desaparecer no meio das coisas, de diminuir o volume da voz, aparece com freqüência nesse livro de estréia:
"Tão leve estou que já nem sombra tenho", diz o soneto 30; "Da vez primeira em que me assassinaram...", começa, famosamente, o soneto 17; "Pra que pensar? Também sou da paisagem...", pensa o soneto de abertura.
Uma paisagem, como se sabe, de casas de arrabalde, de bares com placas descascadas, de gares onde se perderam sapatos pretos e guarda-chuvas, de salas de estar onde os parentes se juntam para um velório, de ruazinhas que já confinam com o campo, à luz de um último lampião. Nada a ver com paulicéias desvairadas, portanto -nem com as caatingas cabralinas. Os lugares de Manuel Bandeira talvez se pareçam com os de Quintana: mas o Recife, ou um beco do Rio de Janeiro, são para Bandeira um motivo de evocação e despedida.
Os lugares de Quintana estão, por assim dizer, no presente; de lá ele espera seus leitores, seus versos, suas assombrações.
O caráter ambíguo, liminar desses lugares -entre campo e cidade, entre o doméstico e o aterrorizante-é também o da poesia de Quintana, entre a prosa e o verso, o erudito e o popular.
Seu sucesso -e sua qualidade- vem daí: o leitor, nostálgico de uma vida brasileira mais pacata e bem-vivida, encontra nas frases do poeta a modernidade da condensação e da surpresa.
É um espaço limitado, estreito talvez: mas nele há lugar para todos nós.