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segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Anos de Silêncio

Lembro-me bem na luminosidade do dia...
Era uma manhã de sol,
na varanda de casa,
da minha casa
em Iomerê..
Minha mãe disse:
"É um segredo".
Nunca revele a ninguém.
Seu padre superior veio aqui e disse...que você deixou o seminário
por tentação do diabo....
Quando te perguntarem
sobre isso diga que ele é o Pe. Ramiro.


No sul do país🇧🇷.
Acho que tinha 24 ou 25 anos, no máximo.. já 
fazendo Medicina..
Sou católico, creio em redenção pós-mortem e não sou propenso às tentações da carne.
Na missa de sete dias da morte do meu pai, no bela Igreja de São Luiz, tentei, uma vez, me ater ao rito.
Na saída, padre André, um padre de vocação, permitiu que segundos de conversa na sacristia.
Na calma atemporal do ambiente interno, admirei a dedicação do sacerdote à vida crerical. Ali, sim, comunguei de sua devoção à Igreja.
A arte e o intelecto são suas virtudes e prazeres que não enxergo como pecado.
Meu filhos, ainda mais avessos à cruz do que eu, acham impossível conciliar a compaixão de Cristo com a morbidez dos dogmas e a riqueza acumulada do clero.
Não os condeno.
O caráter maniqueísta, culposo, masoquista de uma crença nascida do fundo arcaico do Mediterrâneo, destoa do histórico de opulência do Vaticano e do paganismo greco-romano que, ainda hoje, nos rege.
Ganhei de aniversário do um livraço que esclarece o paradoxo.
"A Virada" (Companhia das Letras), do teórico e professor de Harvard Stephen Greenblatt, narra a descoberta, em 1417, do poema "De Rerum Natura", "Da Natureza", de Tito Lucrécio Caro, por um dos primeiros humanistas, calígrafo e caçador de livros, Poggio Bracciolini.
Escrito no séc. 1 a.C., o poema permaneceu esquecido em um dos tantos monastérios que, depois do apagão do Império Romano, guardaram o que restou do saber da antiguidade.
"Da Natureza" resistiu aos incêndios das bibliotecas, à fúria bárbara e à censura cristã. Seu conteúdo é fiel ao atomismo de Demócrito, ao prazer de Epicuro e à ideia de que o destino dos homens não é regido pela vontade dos deuses.
A ligação entre o poema de Lucrécio e Epicuro veio à luz muito tempo depois do feito de Poggio. Em 1753, rolos de papiro com trechos de "Da Natureza" foram encontrados nas escavações do balneário de Herculano, vizinho à Pompeia, também soterrado pelo Vesúvio em 79 d.C.
A biblioteca da casa abastada de Herculano pertenceu a uma elite epicurista que cultivava uma existência livre do medo da danação divina.
"A Virada" explica o porquê de Platão e Aristóteles terem sido absorvidos pelo cristianismo, enquanto Epicuro foi jogado no lixo da história.
Seu universo sem ideal ou alma transcendente, regido por partículas, com deuses indiferentes à necessidade humana e espécies evoluindo ao acaso não caberia na fé cristã. Difamado, a felicidade terrena que pregava foi transformada em escárnio e excesso.
Os 7.400 versos de Lucrécio serviram de estopim para a Renascença e a modernidade. Bruno, Galilei, Shakespeare, Maquiavel e Botticelli os leram, e também o avô de Darwin, Montaigne, More, Moliére e Thomas Jefferson.
Quem diria que, 600 anos depois de "Da Natureza" renascer das cinzas, a Guerra Santa voltasse à baila e o humanismo caísse em desuso?
Preservamos muitos dos pavores medievais, mas evoluímos como ateus. Somos materialistas que rezam o Pai Nosso.
Vem daí a minha dificuldade de comungar na missa, vem de Poggio o prazer intelectual do padre André e de Epicuro a profunda empatia que sinto ao caminhar por Pompeia e pensar que, sim, eu poderia ser um deles. Nessa idade, acredito, não se questionam ordens. Se obedece. E assim foi feito por anos.
Os contatos com minha família eram muito rápidos e feitos, três vezes ao ano. Páscoa, aniversário e Natal. Sussurradas.
Talvez como forma de aumentar a culpa pela transgressão à norma e pela minha existência não se optou por romper de uma vez por todas o frágil laço que nos unia.
Na infância, a manutenção do segredo era essencial para minha sobrevivência em um ambiente familiar e escolar absolutamente católico.
Estudar em colégios católicos, e outros cuja coordenação pedagógica era administrada por ordens como os Franciscanos ou pela Opus Dei (uma prelazia), era, para mim, o grande desafio da discrição e do anonimato.
Para além da excelente formação educacional e cultural recebida nesses colégios, formei-me, também, na arte da despersonalização.
Quanto mais calada, mais introspectiva e menos informações pessoais aos colegas de classe, melhor. Em uma época em que filhos de pais do interior ainda sofriam discriminação, via como verdadeira sentença de morte a possibilidade de ser descoberta suas origens.
Características físicas e de personalidade como timidez, discrição, voz baixa, aspecto frágil e doçura foram, na verdade, ativos desenvolvidos como proteção pela sobrevivência nesses ambientes.
Hoje me divirto quando recebo elogios ou críticas nesse sentido. A maioria dessas características permanece.
Brinco com alguns amigos mais íntimos que poderia mandar meu currículo para a inteligência russa em razão desse treinamento intensivo de mentira e de dupla espionagem desde a infância.
As catequeses e as missas dominicais, de igual maneira, eram ambientes  de muito fé acolhedores aos quais acabei me adaptando com o passar dos anos e, e hoje paradoxalmente, não gostando de frequentar.
Essa é hoje a parte da história que mais me assusta. Pensar que, ao mesmo tempo em que gostava de frequentar ambientes e ritos religiosos, acreditava também na ideia de que eu era a materialização do "pecado" pela quebra do celibato.
Isso significou me descobrir alguém que gostava de se sentir punida.
Certo dia acordei de manhã e me vi como a gatinha belinha, lendo 
 um dos clássicos de Tchekhov, que largou uma vida confortável no circo e voltou para o "conforto" de seu dono agressor. Tive medo.
Esse meu gosto pelo sofrimento significava, na realidade, a reprodução de uma opção feita pelos meus pais de não abandonarem parte importante da sua identidade cultural, a religião católica, por conta da concepção de uma filho.
A escolha da identidade de pai e de mãe em função da reafirmação de uma identidade católica --mais forte e dominante.
E a óbvia culpa manifestada inconscientemente em diversas ocasiões.
Sempre existiu a opção de abandonar a missão de padre e de criar a filhos em um ambiente religioso e ou talvez livre da culpa católica. A liberdade e a plena consciência são sempre uma opção. Mas optou-se pelo sofrimento e pela culpa. De ambas as partes.
A minha não reação a fatos importantes, como quando soube segredos pela minha mãe que meu pai era bruto e estupido, são sinais de o quanto o silêncio e a negação de fatos reais sempre foram, para mim, confortáveis refúgios de sobrevivência.
A vitimização e a manutenção do silêncio teriam sido o caminho mais fácil caso não tivesse a sorte de ouvir de uma amiga psicóloga: "Esse segredo não é seu".
Aos poucos essa frase foi se solidificando e fui me afastando cada vez mais dos dogmas religiosos e do estigma de ser "rebelde".
Ainda hoje, porém, o inconsciente continua me dando algumas rasteiras e, por vezes, me vejo revivendo dores de vazios não preenchidos.
Ouvi recentemente de uma amigo que ele e o mulher estavam preparando um almoço de  para suas família. No mesmo instante, ouvi de novo a frase de um funcionário do seminário quando, pela última vez, em 2O10, tentei contato com meu superior por meio de ligação anônima e obtive a seguinte resposta: "Ele está mal de uma doença neurológica".
Família é um conceito difuso. Deveria ser o lugar de acolhimento e de hospitalidade de todo indivíduo.
O lugar no qual todos os membros se sentissem queridos, protegidos, abraçados ""não de forma teatral e dissimulada, mas genuína.
Lugar de acolhimento do ser em sua essência ""e não de julgamentos pela escolha de parceiros, pela opção sexual, pela renda, pelo tipo físico ou pela vida pregressa dos pais.
Para os filhos, nada seria por decreto da Igreja Católica desde o nascimento, o conceito de família é algo a ser repensado e ressignificado. Caso contrário, é possível que traumas se instalem e se perpetuem por gerações. Talvez pelo amplo moralismo e conservadorismo que ainda permanecem em nossa sociedade. Ou pelo medo.
A Igreja Católica e a sociedade brasileira precisam dar voz a esse segmento de sobreviventes que foram seminaristas. Sobreviventes do preconceito e, especialmente, de anos de silêncio acerca de sua identidade e vida num monastério.