O
POETA CARLOS
Drummond
de Andrade é brasieleiro.
Vi-o, pela primeira vez, ao sair do
elevador do "Correio da Manhã", na avenida Gomes Freire, aonde fui
com Oliveira Bastos
e Décio Victório, certa tarde,
em que
decidimos
escandalizar
as pessoas.
Meus dois companheiros
tinham as respectivas gravatas
presas à cintura, enquanto
eu trajava calças, paletó e gravata mas,
em lugar de
sapatos, calçava tamancos. Você não deve ter se dado conta da provocação, pois
mal nos olhou, ao sair do elevador. Subimos até o andar da Redação e, numa
saleta, nos deparamos com Otto Maria Carpeaux que, míope como era, escrevia à
mão com a cara grudada no tampo da escrivaninha. Entramos os três e nos
pusemos, ali, imitando-o, também com a cara colada na mesa. Ele se assustou e
nos lançou um olhar indignado que nos fez deixar a saleta às gargalhadas.
Isso foi em 1955, quando alguns
poucos
que me conheciam tinham-me por maldito.
Eu vagabundava, naquela época, pelas
ruas do centro da cidade e às vezes
me sentava à porta de um restaurante, ali
na esquina
de Graça Aranha
com Araújo Porto Alegre;
para contemplar
o edifício
do hoje Palácio
Gustavo Capanema,
que parecia flutuar,
onde você trabalhava.
E
o vi, certa vez,
deixar o trabalho,
de mãos dadas com uma mocinha, que, soube
depois, era sua namorada. A sua cara, porém, nada dizia.
Muitos anos se passaram até que você
chegasse aos 70 anos e me convidassem para participar de um programa de
televisão em sua homenagem. Escolhi, para dizer, aquele seu poema
"Memória", por ser curto e por ser belo:
"As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.
Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão."
Fiquei todo bobo quando, dias depois,
recebi um bilhete seu, agradecendo minha participação na homenagem e elogiando
o modo como havia dito o poema. Tenho esse bilhete comigo, até hoje, guardado
em alguma gaveta.
A última vez que o vi foi no velório de
Vinicius de Moraes, no cemitério São João Batista. A morte, neste caso, serviu
para nos aproximar: fui falar com você e, para minha surpresa, em vez do homem
tímido e reservado, deparei-me com um sujeito irritado, reclamando da doença
que lhe tinha aberto uma ferida no rosto, como me mostrou. Havia, de fato, uma
cicatriz que lhe marcava a face direita.
Depois disso, só voltaria a vê-lo
naquele mesmo cemitério, desta vez em seu próprio velório.
Eu tinha, naquele
dia, um compromisso de trabalho em Brasília mas, a caminho do aeroporto, fui,
por assim dizer, despedir-me de você.
E, desta vez, quem estava revoltado
era
eu, revoltado com sua morte,
com esse fato inevitável e inaceitável, que é a
morte
das pessoas que amamos ou admiramos. As declarações,
que dei aos
jornalistas, naquela ocasião, estavam mais perto do insulto que de outra coisa.
A quem eu insultava, na verdade, não sei.
Carta tardia que recebeu
foi o
autor deste artigo Ferreira Gullar.