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quarta-feira, 29 de março de 2023

Leizure

Ócio, lazer e tempo livre: 
Será que as experiências no âmbito do lazer vivenciadas no século XXI ainda carregam consigo o ideal clássico do ócio defendido pelos gregos.
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O ócio é um fenômeno cultural presente na humanidade através dos tempos. Entretanto, o sentido do termo sofreu mudanças durante o processo civilizatório. 
Por exemplo, na Grécia Antiga, figurava como valor nobre, ligado ao desenvolvimento pessoal, por intermédio da reflexão filosófica política e cultural.
Ócio deriva do termo grego scholé, que significa um estado de paz, de fruição criadora, condição para a sabedoria. Configura-se a partir de uma condição humana que busca conhecimento, autonomia, tempo e lugar para desfrutar e reinvenção da vida, o ócio como prática de liberdade, que possibilita usufruir e decidir entre o que desejamos ou não fazer para  durante o tempo livre das obrigações sociais e profissionais. Tais práticas podem nos conduzir à potencialização de virtudes pessoais a partir do contato com dimensões culturais e sociais como literatura, arte, teatro, música, dança, festas comemorativas, contemplação, acesso ao conhecimento, exercício político, entre outras, cujo interesse é somente acrescentar capital cultural à vida e, portanto, nos tornar pessoas mais sensíveis, criativas, inventivas, críticas, politizadas e humanizadas.
Entretanto, os romanos não assimilaram essa visão grega do ócio. Adotaram o sentido dado do latim à palavra otium, que designa o ócio em oposição ao trabalho, considerado negotium, ou seja, negócio. Deixa de ser uma dimensão da vida ligada ao desenvolvimento pessoal e passa a ser compreendido como tempo útil, destinado ao descanso e à recreação do espírito. O ócio converte-se em divertimento, considerado uma prática de atividades instrumentais a serviço, muitas vezes, do controle político e religioso sobre o povo pelo viés da regulação da escolha das práticas, e em quais tempos e espaços devem acontecer. Por exemplo, o controle do calendário religioso que organizou, e ainda organiza, em alguns territórios, a vida social dos cidadãos. Essa concepção permaneceu, com pequenas mudanças, na fase do Cristianismo, Idade Média e Renascimento até a Revolução Francesa, quando aconteceram as últimas transformações, configurando-se na ideia de trabalho e ócio da modernidade. Durante esse processo, o mundo do trabalho, a Igreja e o Estado atuaram como reguladores/controladores
 
dos divertimentos, retirando do sujeito o protagonismo das escolhas ligadas aos interesses culturais, praticamente transformando a produção cultural do povo em produção industrial, sustentada nos mesmos moldes do modelo do capital, ou seja, mercadoria a ser vendida e comprada, chamada hoje de mercado do lazer.
Com intensa influência dessas instituições, os valores éticos e religiosos modernos passaram a considerar o trabalho uma virtude e o ócio, um vício a ser curado, e ditados populares como “cabeça vazia, oficina do diabo”, de origem religiosa, nunca pareceram mais corretos, invertendo finalmente o sentido atribuído pelos gregos. Na modernidade, o fenômeno do ócio passa a ser denominado ociosidade, indo de encontro às expectativas do sistema de produção, e por isso considerado tempo improdutivo, impactado por tendências sociopolíticas, geopolíticas e econômicas, somente aceito a partir da ideia de tempo de recuperação, sujeito às imposições da sociedade ocidental industrializada. A tensão entre tempo de trabalho e tempo de ócio se potencializam, decretando o fim do ócio vivido no tempo livre, pois, para muitos, nenhum tempo é livre, todo tempo é dinheiro.
Nos grandes centros urbanos, o impacto dessa tensão reflete-se na falta de tempo para os cuidados com a saúde, o lazer, a cultura, a participação cidadã, entre outras dimensões da vida cotidiana. A ausência desse tempo gera também o desejo de uma vida mais singular e coletiva versus mais força de trabalho para encarar a competição imposta pela produção mercantil. Na tentativa de resistir à invasão dessa lógica em todos os setores de produção, inclusive nos bens imateriais, as experiências do ócio podem se configurar como formas de resistência emancipatória, pois esse tempo “poderá ser considerado como possibilidade de o homem, o ser-aí heideggereano, permanecer na escuta do ser e da verdade, logo, o mais próximo de si próprio que é possível”. Pensar em um (re)posicionamento do lugar das experiências de ócio em relação ao trabalho só é possível se houver um maior equilíbrio entre essas duas dimensões. O tempo não é mais livre, também não é dinheiro, mas é tempo necessário para a sobrevivência da condição humana e, portanto, deve ser (re)conquistado a partir de uma educação para e pelo lazer, tornando possível aprender a valorizar e lutar por esse direito social.
Um dos caminhos para essa (re)conquista transita entre três polos distintos, porém complementares: cultura, políticas públicas e acesso a bens culturais. A cultura, pilar de sustentação das experiências de lazer, “é a única faceta da vida e da condição humana em que o conhecimento da realidade e o do interesse humano pelo auto aperfeiçoamento e pela realização se fundem em um só […], ela questiona constantemente a sabedoria, a serenidade e a autoridade que o real atribui a si mesmo.
Mas precisamos ficar atentos porque o sistema mercantil, os meios de comunicação e outras instituições de poder tentam moldar produtos culturais, como, por exemplo, a literatura, o esporte, o cinema e a música, os quais são atravessados pela dinâmica social de classe, gênero, raça, idade e relações étnicas e podem gerar a exclusão em tais experiências.
No Brasil, quando houve a promulgação da Constituição da República Federativa, em 1988, foram estabelecidos vários direitos e objetivos fundamentais para a República brasileira. Foi quando emergiram os debates sobre a legislação trabalhista que o lazer foi incluído como um direito social fundamental de todo cidadão. Conforme consta no art. 6º, “são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta constituição.” (BRASIL, 1988).
Mas até onde esse direito tem alcançado todos os cidadãos de maneira equitativa. A concepção daí resultante permitirá estabelecer um parâmetro ético-político referente à trajetória da construção de políticas públicas de lazer, em que deve haver inclusão social, um ponto ainda a ser resolvido.
Pensar em experiências de lazer que realmente conduzam ao crescimento pessoal, à fruição da cultura e à vivência privilegiada da dimensão lúdica requer repensar na organização do tempo social cotidiano. Refletir sobre isso seria um bom começo para lutarmos pelo direito ao lazer de todos, em um tempo em que esse direito está para ser conquistado a partir de movimentos de resistência emancipatória em prol dos interesses culturais.