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quarta-feira, 13 de março de 2024

Cemetry Gates

Na letra de “Cemetry Gates”, música do melhor e mais popular LP do grupo inglês The Smiths, The Queen Is Dead, de 1986, Morrissey tratava daquilo que definiu como “o mais absorvente passatempo” a atração por túmulos. Os adeptos do hábito conhecido pelo neologismo “tafofilia” alegam que os passeios buscam a paz de espírito e a beleza dos cemitérios. “Posso gastar horas e horas num deles, ape­nas inalando o ar misterioso dos lugar não  só mas dos indivíduos.. histórias..etc
Morrissey, disse quando vive­ram, amores alegrias, tristezas, até quando morreram, tudo é inspirador.

O vocalista dos Smiths visitava necrópoles em especial o Southern Cemetery, em sua Manchester natal desde o final da adolescência, na companhia ou de sua amiga Linder Ster­ling ou de Howard Devoto, membro de outras duas impor­tantes formações do rock local, os Buzzcocks e o Magazine. O encanto de “Cemetry Gates” começava pela leveza, inco­mum num disco sombrio de uma banda triste. O guitarrista Johnny Marr chegara à melodia ao experimentar uma troca de acordes. Em vez do sol para si menor de “I Wanna Hold Your Hand”, dos Beatles, de si menor para sol. 
A “tafofilia” fornecia o cenário, mas não era o único assunto da letra que grafava a palavra inglesa cemetery de modo errado. Morrissey descrevia um “temido dia enso­larado”, no qual encontrava alguém na porta do cemité­rio para uma conversa sobre literatura e plágio entre as lápides. Na ocasião do lançamento de The Queen Is Dead, o terceiro dos cinco álbuns dos Smiths, o próprio Morrissey vinha sendo acusado pela imprensa inglesa de se apoderar de palavras alheias na cons­trução de suas letras.
Nesse passeio pelo cemitério em particular, Morrissey tecia considerações insinceras sobre ser errado plagiar  o que era particularmente engra­çado se se soubesse que a própria letra citava Shakespeare (Ricardo III) e os diálogos de um velho filme de Bette Davis (Satã jantou lá em casa) e sobre como isso mais cedo ou mais tarde seria descoberto. Além disso, no refrão dirigido ao companheiro de jornada, e ao ouvinte solidário, ele explicitava a idolatria quintessencial para a compreensão de sua vida e sua obra: “Keats e Yeats estão do seu lado/ Enquanto Wilde está do meu. Havia uma ironia adicional nessa referência ao escritor, poeta, drama­turgo e frasista irlandês Oscar Wilde (1854-1900). Sua própria poesia havia sido acusada de plagiar os mestres do passado. E entre os inúmeros epigra­mas do artista mais popular na Londres dos anos 90 do século 19, estava um que casava com o contexto de “Cemetry Gates”: “O talento toma empres­tado, o gênio rouba”. Morrissey nunca teve dúvidas de que era um gênio e de que Wilde estava desde sempre do seu lado. Ou vice-versa.
Em meio a centenas de marcas de batom deixadas por fãs no monu­mento que abriga os restos mortais de Wilde no cemitério Père-Lachaise, em Paris, não é raro encontrar uma pichação com o nome Morrissey. Nou­tro toque da justiça poética tão cara ao líder dos Smiths (também conhecido como “Mozzer” ou “Moz”), sob a escultura alada de Jacob Epstein repousa, além do pó daquele que um dia foi Oscar Wilde, o de seu primeiro e mais fiel amante, Robert Ross, que à época do início do affair tinha 17 anos.
Morrissey nunca deixou dúvidas sobre a importância de Wilde para sua formação artística e para a condução de toda a sua vida. A bibliografia mor­risseyana comprova: o nome de Wilde aparece em 28 páginas da biografia Saint Morrissey, publicada por Mark Simpson em 2004 para se ter uma ideia, o nome de Marr, parceiro na breve e gloriosa época dos Smiths (1982- 1987), aparece em meras 26, e o do ator americano James Dean, outra divin­dade para o cantor irlandês, em 24. Já na impressionante Mozipedia, The Encyclopedia of Morrissey and The Smiths, publicada por Simon Goddard em 2009, o verbete de Wilde só perde em tamanho para o de Marr e para o da batalha legal que o guitarrista e o cantor enfrentaram em 1996.
Naquele ano, o baterista Mike Joyce processou os dois autores das músi­cas dos Smiths alegando, com base numa lei de 1890, que os rendimentos relativos a direitos autorais de todos os ex-membros da banda deveriam ser iguais. Havia um acordo verbal de Morrissey e Marr com Joyce e com o bai­xista Andy Rourke de que os dois primeiros teriam 40% desse dinheiro cada um, e os outros dois, 10% cada. O juiz deu ganho de causa a Joyce e determi­nou a divisão em quatro partes iguais. Embora a decisão tenha sido revista, o veredicto foi uma das principais causas, se não a principal, para Morrissey ter ido morar nos Estados Unidos. Com uma passagem pela Itália.
O cantor sentiu-se tão injustiçado quanto Wilde nos célebres julgamen­tos que o arruinaram física e moralmente em 1895, depois de seu ídolo ter processado o marquês de Queensberry, que, por escrito, o acusara de ser sodomita. Criador das regras do boxe, o truculento nobre estava contrariado com o notório envolvimento — para o qual o resto da sociedade fazia vista grossa – entre seu filho, lorde Alfred Douglas, mais conhecido como “Bosie”, e o famoso dramaturgo. A homossexualidade ainda era crime na Inglaterra, e, instigado pelo amante, Wilde decidiu levar o ofensor ao tribunal. Erro crasso. A princípio, Wilde conduziu o julgamento, como se este fosse apenas mais uma das rodas de conversas sofisticadas nas quais costumava pontifi­car. Então, inquirido se beijara um empregado de Bosie, foi traído pela língua. Respondeu que não, não o tinha beijado porque “ele era, infelizmente, muito feio”. Naqueles tempo e circunstância, a boutade valia por uma admissão de culpa. O jogo virou. O marquês de Queensberry foi absolvido no mesmo dia em que Wilde era preso, acusado de cometer atos indecentes. Depois de um segundo julgamento inconclusivo, o irlandês acabou sentenciado no terceiro, no qual o juiz o declarou “morto para todo senso de vergonha”, a dois anos de trabalhos forçados na prisão de Reading. Wilde cumpriria a pena, iria se exilar na França e morreria de verdade, de meningite, aos 46 anos.
Quando foi a vez de Morrissey se defender num tribunal, o caso de Wilde lhe passou pela cabeça, como um pesadelo e como uma possibilidade atraente de martírio. Tanto que ele quase pôs ainda mais a perder –além do dinheiro  com suas tiradas ferinas e com aquilo que seu próprio advogado admitiu ser “um grau de arrogância”. Afora dar ganho de causa a Joyce, o juiz se irritou a ponto de descrever Morrissey como um sujeito “desviante, truculento e inconfiável”. Na ocasião, o baixista Andy Rourke matou a pau na interpretação do que ocorrera no tribunal: “Ele veio como Morrissey, mas, para um juiz, provavel que isso é truculento.
Ao se apresentar à justiça não como o cidadão Steven Patrick Morrissey, nas­cido em Davyhulme, grande Manchester, em 22 de maio de 1959, mas como o pop star Morrissey, eterno, ele embaralhava vida e obra de uma maneira que deixaria Wilde batendo palminhas. E também de uma das maneiras como a ensaísta americana Susan Sontag definiu o que era camp, num célebre texto de 1964, pontuado por citações do irlandês: “Camp é a glorificação do ‘persona­gem’. […] O personagem é entendido como um estado de incandescência con­tínua – a pessoa sendo algo muito intenso.” Morrissey, tal qual a Greta Garbo citada nessa mesma passagem, sempre foi Morrissey.
A conexão camp é apenas uma das dezenas de conexões possíveis entre Wilde e Morrissey, muitas delas propagandeadas pelo cantor. Seja na cita­ção nominal em “Cemetry Gates”, seja na camiseta usada para uma foto estratégica, passando pela imagem do irlandês que aparece no videoclipe de “I Started Something I Couldn’t Finish”, Wilde está lá. As ligações podem ser vislumbradas até antes do nascimento de Morrissey: seus pais eram irlande­ses como Wilde, muito católicos, e haviam imigrado para a Inglaterra pouco antes do nascimento do filho caçula. Em 2004, Morrissey acertaria contas com a religião em “I Have Forgiven Jesus”: “Eu perdoei Jesus/ Por todo desejo/ Que ele botou em mim quando não há nada a fazer/ Com esse desejo.”
A mãe de Morrissey, Elizabeth, foi a responsável pela sua apresentação a Wilde e por isso recebeu saudações  e agradecimentos públicos do filho em diversas ocasiões. Ele lembra que, antes ainda de completar dez anos, sua mãe lhe recomendou a leitura de algo com uma frase forte: “É tudo o que você tem de saber sobre a vida”. O pequeno Steven a princípio relutou. Pouco depois, porém, caiu de amores pelo livro que trazia as obras completas de Wilde. “Ele usou a linguagem mais básica e disse as coisas mais poderosas”, derra­mou-se Morrissey. Essa, inclusive, poderia ser uma excelente definição para a melhor música pop. Linguagem básica para dizer coisas poderosas.
Claro, o conceito de “linguagem básica” de Morrissey é bastante pecu­liar. Wilde se expressou, por escrito e oralmente, de um jeito que, se não era cheio de firulas ou literatices, também estava longe de ser comum. Aliás, é bem pouco provável que nem o mundo nem Morrissey  mesmo numa idade tão tenra  tivessem se interessado pelo irlandês caso ele fosse tão descomplicado. Foi o seu refinamento que atraiu um público numeroso a um romance como O retrato de Dorian Gray, a uma peça como A importân­cia de ser prudente ou a ditos independentes de obras literárias, como “às vezes penso que Deus, ao criar o homem, de alguma forma superestimou sua habilidade”, ou “ser natural é uma pose muito difícil de manter”.
O raciocínio ultrassônico que possibilitava a Wilde esses pequenos prodígios de humor e sabedoria foi emulado com sucesso quando aquele menino anglo-irlandês do bairro de Hulme cresceu. Tanto nos versos de suas canções intensas, mas nem um pouco básicas, quanto em frases espiri­tuosas soltas como quem não quer nada no meio das muitas entrevistas que concedeu. Numa das mais célebres, concedida ao (então) jornal New Musi­cal Express no começo de 1988, não muito depois da debandada dos Smiths, ele discorria, entre outros tópicos, sobre Wilde. “Independentemente de como ele escreveu ou de como viveu em público, sua vida privada também é impressionante”, declarou a Len Brown. “E esse é o julgamento final para todos os artistas […]. Não creio que seja suficiente ligar e desligar, estar lá de dia e jogar hóquei à noite.”
É irônico saber que o mesmo argumento foi usado contra Morrissey por um de seus primeiros grandes fãs no Brasil, Renato Russo. O líder da Legião Urbana gostava do líder dos Smiths a ponto de, durante muito tempo, usar uma capa impermeável promocional com o nome Morrissey no peito (à época, ambos eram “colegas” de gravadora, a britânica EMI). Um dia, entre­tanto, a admiração fraquejou. “Eu não acredito no Morrissey”, queixou-se Renato, que nunca teve nem pendor nem interesse por esporte nenhum. “Ele joga basquete.” Não se sabe qual a fonte de Renato, mas ele costumava ser muito bem informado décadas antes de a internet virar corrente.
Renato era fã de Morrissey não só por causa da (suposta) coerência artís­tico-existencial, mais ou menos a mesma que tornara Morrissey fã de Wilde. Era fã também, ou sobretudo, por conta da inteligência de suas letras, cheias de um aguçado senso dramático, reforçado pela característica voz chorosa e por arranjos grandiloquentes. Em Morrissey, a influência de Wilde pode ser entreouvida, por exemplo, em “eu nunca quis matar/ eu não sou natu­ralmente mau/ tais coisas eu fiz/ só para me fazer/ mais atraente para você/ terei falhado?” (“The Last of the Famous International Playboys”), ou de “anjo, não tire sua vida/ algumas pessoas não têm orgulho/ elas não enten­dem/ a urgência da vida/ mas eu te amo mais do que à vida” (“Angel, Angel, down We Go Together”).
A rigor, toda letra de Morrissey inclui ao menos um grande achado poé­tico. Não é pouco para um sujeito que além dos cinco álbuns dos Smiths – e de seus incontáveis singles avulsos – gravou até hoje outros 11 álbuns solo – mais a inevitável penca de singles que não fazem parte de nenhum deles. Por conta de uma associação automática entre indústria fonográfica e pop star, muitos analistas veem o tenor napolitano Enrico Caruso (1873-1921) como seu primeiro representante. Se a relação for estabelecida não com o comér­cio, mas com a arte que lhe serve de matéria-prima, os primeiros pop stars podem ter sido os musicistas e compositores Niccolò Paganini (1782-1840), Fryderyk Chopin (1810-1849) ou Franz Liszt (1811-1886), de imenso sucesso em seu tempo.
No entanto, embora nunca tenha posto uma única nota musical numa pauta, Wilde também é frequentemente indicado a primeiro pop star. Na biografia Saint Morrissey, Mark Simpson lembra “que Oscar Wilde era, no final das contas, o líder do Movimento Glam Rock do Século 19 (embora naquele tempo isso fosse conhecido como o Movimento Estético)”. Um roqueiro avant la lettre, enfim, empenhado em chocar/seduzir a burguesia com a literatura, as tiradas sarcásticas e, last but not least, a indumentária excêntrica, culminando com um cravo vermelho, sua marca registrada.
Talvez o episódio que melhor represente o status de Wilde não seja a sede do público pelos detalhes sórdidos dos julgamentos na Inglaterra, e sim o deslumbramento do público por sua turnê triunfal nos Estados Uni­dos. Ele aportou em Nova York em 2 de janeiro de 1882, recebido por uma multidão que esperava ver um extraterrestre. A turba se decepcionou, mas a ocasião propiciou a Wilde um dos seus mais famosos epigramas. Solicitado pela alfândega americana a declarar os seus bens, o irlandês saiu-se com o imortal “nada a declarar, exceto o meu gênio”. Depois dessa entrada triun­fal, ele passaria mais de um ano cruzando o país em conferências lotadas, apesar de os conservadores externarem temores de que o comportamento do visitante pudesse ser uma péssima influência para a moralidade local. Na volta à Inglaterra, a excursão aos Estados Unidos alavancaria mais uma famosa boutade, a de que “os ingleses têm mesmo tudo em comum com os americanos, exceto, naturalmente, a linguagem”.
Simon Goddard crava, na sua Mozipedia, que Wilde “é, se não a maior influência geral, a maior influência em termos de literatura” em Morrissey. Já Simpson, de Saint Morrissey, chega a inverter a questão, com sarcasmo:
Muitos foram levados a falar do quanto Morrissey deve àquele peitudo cantor de fossa e comediante de stand-up anglo-irlandês do século 19, o ‘primeiro pop star’. Indiscutivelmente, o pobre Oscar foi apenas um protótipo inicial fracassado e um pouco obeso de Morrissey.
O problema dessa afirmação está na porção “século 19”. De modo consciente ou não, Wilde usou as armas que seu tempo disponibilizava para chocar a sociedade ou, ao menos, a parte influente dela: as palavras, as roupas, os afetos homossexuais (a despeito de ter se casado com uma mulher, com quem até teve dois filhos). Não custa lembrar que ele passou toda a sua existência como súdito da rainha Vitória e que, graças à ocu­pante do trono inglês entre 1837 e 1901, ainda hoje o Houaiss alista, como uma das acepções da palavra “vitoriano”, “típico dos padrões, gostos e atitudes morais e comportamentais dessa época, em que se destacam o puritanismo e a intolerância”. Foi ao mesmo tempo mais difícil e mais fácil para Wilde ser Wilde no século 19.
Apesar de Morrissey ter declarado que “é preciso coragem para ser eu”, chocar a burguesia no século 20 passou a ser não tanto uma questão de bra­vura, mas de senso de oportunidade, de escarafunchar os últimos tabus da moralidade. Não se está, com essa constatação, querendo dizer que Morris­sey é um oportunista. Não. Morrissey é um verdadeiro artista e, talvez nem haja exagero em dizer, um dos maiores artistas que seu tempo produziu. Ele é colocado pelo avanço (pela decadência, diriam os puritanos) dos costumes diante de um problemão: como ser Wilde em pleno século 20.
A literatura perdeu a importância cultural central que tinha na época de seu ídolo-mor. Na verdade, a própria inteligência que fez a glória e a misé­ria de Wilde saiu de moda, substituída na grande mídia por uma ignorância autossuficiente e pelo culto cego às massas, advindo de um esquerdismo pre­guiçoso. Depois dos punks londrinos do verão de 1976 (dos quais Morrissey também descende espiritualmente), depois da estilista Vivienne Westwood, depois até da velha revista Playboy, chocar por intermédio de roupas ou pela falta delas tornou-se impossível. E a homossexualidade, proscrita e perse­guida em países de mentalidade medieval, não é mais motivo para escândalo nas nações desenvolvidas, justamente aquelas nas quais a arte de Morrissey circula. Nelas, conservadores em desespero afirmam que ser gay está em vias de se tornar obrigatório.
E aí, repete-se, como ser o Oscar Wilde do século 20?
A primeira resposta de Morrissey é tão óbvia que não merece conside­rações mais extensas: despertado, seu talento pela literatura foi desviado para a música pop, que, junto com o cinema, passou a ocupar aquela centra­lidade cultural que era privilégio da própria literatura e da música clássica. Seja em sua curta e fulgurante carreira à frente dos Smiths, seja em sua já longa e um pouco irregular carreira solo, ele entendeu que, se quisesse se fazer ouvir, teria de falar mais alto, com um microfone na mão, em cima de um palco muito bem iluminado. Não há mais, é claro, nada de chocante nisso, mas a música pop lhe forneceu um trampolim.
Em termos de moda, fora o topete à la Elvis, Morrissey conseguiu rea­vivar o culto de Wilde pelas flores. Frequentemente enfiadas nos bolsos traseiros de sua calça jeans. “Como um Smith, eu usei flores porque Wilde sempre usou flores”, admitiu. “Acho que flores são coisas maravilhosas. Muito agradáveis e inocentes. Elas não fazem mal a ninguém.” Morrissey gosta de lembrar como Wilde iniciou um discurso para mineiros no Colo­rado, durante a turnê de 1882-1883, dizendo “deixe-me contar por que nós veneramos o narciso amarelo”. Tinha coragem, o homem. Depois, foi tomar uísque de milho com seus rudes espectadores, conquistando-lhes a admira­ção também pelo fígado forte. Morrissey, por sua vez, acabou abandonando as flores, vestindo-se com a elegância de um inglês de meia-idade. Exceto quando, num truque sujo repetido nos shows, tira a camisa, enxuga o suor do peito e da barriga e a atira para o público em êxtase.
Em termos, comportar-se Morrissey se notabiliza pela defesa intransigente dos direitos dos animais e, consequentemente, do vegetaria­nismo. Ele não come nem carne nem peixe nem “nada que tenha vivido”. Isso, é óbvio, não implica uma dieta sem batata frita ou chocolate, razão pela qual ele já declarou não ser um vegetariano, não no sentido de alguém que só come coisas saudáveis. Os fãs dos Smiths foram apresentados à sua pla­taforma alimentar – defendida em termos fortes, que consideram comer carne “do mesmo nível moral que abusar de crianças” – no 1.P Meat Is Murder, de 1985, cuja faixa-título foi adotada como um hino pelos veggies.
Para Simon Goddard, “em Morrissey, o vegetarianismo é mais do que uma escolha dietética, ou mesmo ética, mas uma batalha moral contra a barbárie dos homens contra os animais”. Como o cantor vive numa socie­dade que se afoga em gordura animal, e se compraz com isso, sua posição ainda é capaz de suscitar algum escândalo ou, no mínimo, confrontar o fã carnívoro com um interessante dilema ético. Não é pouco. Tampouco é o bastante para conceder-lhe a dimensão escandalosa de Wilde.
Evidentemente, a principal razão para Wilde ter alvoroçado a sociedade de seu tempo foi a sua vida sexual. Enquanto ficou restrita a quatro pare­des, fossem elas do quarto de dormir ou do salão dos bem-pensantes, ela contribuiu para o seu sucesso. A partir do momento em que foi arrancada do armário a chutes e pontapés, nos rumorosos julgamentos de 1895, ela se aliou a seu fracasso. No tempo de Morrissey, contudo, a situação já era bem outra. Trazer a público a concretude da expressão “o amor que não ousa dizer seu nome” – cunhada por Bosie, o amante chave de cadeia de Wilde, como punch line de um poema chamado “Two Loves”, de 1894 – poderia gerar risos ou atos homofóbicos, não mais arruinar uma vida. Outras for­mas de amor físico também não pareciam muito promissoras na tarefa de chamar atenção para Morrissey e sua arte. Bissexualidade? Pansexualidade? Transgênero? Muito déjà-vu.
Morrissey, então, teve um de seus momentos de gênio. Declarou-se celi­batário. Numa sociedade tão afogada em sexo quanto em gordura animal, a sua opção soou como outro manifesto vegetariano. O cantor não querer saber de carnes era mais espantoso, para um público iludido pelo trinô­mio sexo-drogas-rock’n’roll, do que se ele proclamasse em horário nobre que transava com anões besuntados em óleo light de gergelim. Ao pregar a abstinência, Morrissey foi do contra no seio da contracultura. Como o seu vegetarianismo fora despertado por um documentário sobre matadouros entrevisto na Tv, seu celibato foi atribuído a experiências dolorosas e insípi­das com gente de todos os sexos. “Não fico envergonhado nem embaraçado por isso”, declarou.
O celibato mostrou-se sedutor nos anos 1980, mas Morrissey passou as décadas seguintes se desdizendo ou relativizando o que dissera. Algo com o teor de “eu estava celibatário, não sou celibatário”. O que, numa tática mor­risseyana típica, tão somente criou mais névoas em torno de sua vida sexual. Já num primeiro momento, é claro que muita gente não fez fé no seu celibato, relacionando-o a um amor que ainda não ousava dizer seu nome. Uma suposta natureza última de sua relação com o guitarrista Johnny Marr foi alvo de mui­tas especulações no decorrer dos anos, nenhuma delas nem perto de conclu­siva. O que muito ajuda o mito. Tanto mais que uma nova geração de artistas, da brasileira Sandy à americana Miley Cyrus (ou Hannah Montana), fez da vir­gindade uma peça de marketing, vulgarizando a abstinência de sexo.
Nesse campo, entre outros, Morrissey irritou-se de verdade foi com a biografia escrita pelo inglês Johnny Rogan, em 1992, Morrissey and Marr: The Severed Alliance. O cantor praticamente lançou uma fatwa contra Rogan. E, como a sugestão não foi mesmo levada a sério pelos fãs, ele ofereceu uma dose extra de ironia em 1999: “Acho que Rogan está trabalhando num volume dois. Acredito que ele está fuçando meu lixo atrás de indícios de lesbianismo.” Seja como for, hoje o seu celibato é um discurso do passado. Aceita-se que Morrissey goste de meninos e meninas, como cantou o fã Renato Russo. Ido­latrado do jeito que é, não deve lhe faltar suprimento de uns e de outras.
Onde em que Morrissey talvez mais tenha se aproximado de encar­nar o Wilde dos séculos 20 e 21 foi na delicada questão do racismo. Numa sociedade para sempre traumatizada pelo Holocausto, e sedada às diferen­ças pela correção política, o racismo talvez tenha se tornado o derradeiro estigma. Como tática de choque, entenderia-se um flerte de Morrissey com a causa. Todavia, ele chegou a processar a (agora) revista New Musical Express por tê-lo caracterizado como racista na edição de uma entrevista em 2007. A controvérsia, porém, é bem mais antiga, vem desde o tempo dos Smiths
A polêmica nunca teria prosperado se várias músicas de Morrissey não roçassem o tema em termos ambíguos – como “Bengali in Platforms” (“Ele só quer abraçar sua cultura/ E ser seu amigo para sempre/ Para sempre”) e “Asian Rut” (“Oh, garoto asiático/ Que drogas você tomou?”) – ou flertassem com a violência de extrema-direita – como “Sweet and Tender Hooligan” (“Ele era um doce e terno hooligan/ E disse que nunca, nunca vai fazer aquilo de novo/ E claro que não vai – oh, não até a próxima vez”) e “The National Front Disco” (“Oh, vocês vão…/ Sim, sim, sim, sim!/ ‘A Inglaterra para os ingleses! A Ingla­terra para os ingleses!’”). Até o uso da bandeira britânica em shows foi apon­tado como manifestação de racismo, só porque ela foi apropriada pelos racistas. Comentários sobre o reggae ou o rap também foram arrolados no “processo”.
Assim como as declarações de Wilde no julgamento de 1895 e as suas próprias, no de 1996, algumas tiradas de Morrissey não contribuíram para que se dissipassem as dúvidas sobre seus reais sentimentos em relação a outras raças e culturas. Porque toda celebridade ou autoridade sabe que, de uma maneira perversa, cada desmentido na imprensa costuma carregar um quê de confirmação. “Acho que se o National Front fosse odiar alguém, seria eu”, protestou Morrissey em 1994. “Eu estaria no topo da lista.” Mesmo uma letra que, na sua cabeça, deveria significar sua repulsa a qualquer pen­samento de direita pode soar como uma declaração de amor. É o caso dos versos de “Irish Blood, English Heart”, de 2004: “Eu sonhei com um tempo em que/ Ser inglês não é ser funesto/ (É) Defender a bandeira sem se sentir/ Envergonhado, racista ou parcial.”
O pivô do processo de difamação contra a NME foi um comentário passível de muitas interpretações (a revista preferiu a pior, é lógico), conforme rever­berou pelo resto da imprensa inglesa. Disse Morrissey na entrevista fatal:
A questão da imigração é bastante complicada porque, embora eu não tenha nada contra pessoas de outros países, quanto maior o influxo na Inglaterra, mais a identidade britânica desaparece.
Então, o preço é enorme. Se você viaja para a Alemanha, ela ainda é completamente alemã. Se você viaja para a Suécia, ela ainda tem uma identidade sueca. Mas se você viaja para a Ingla­terra, não tem ideia de onde está.
É razoável questionar se alguém com a inteligência de Morrissey – e com um histórico de acusações por um suposto racismo  teria dito tais coisas sem pensar que elas poderiam ser entendidas como foram.
Fazia parte da entrevista uma observação fácil de ser cons­tatada, compartilhada e compreendida por quem quer que tenha visitado Londres nos últimos dez anos. “Se você anda por Knightsbridge em qualquer dia comum da semana, não vai ouvir o sotaque britânico”, exemplificou Morrissey. “Você vai ouvir todos os sotaques sob o sol, menos o britânico.” É a mais pura verdade. Não só pela presença da loja Harrods e de muitos museus. Tais frases podem ser entendidas como manifestação de xenofobia, mas também como lamento nos­tálgico de um inglês pelo charme perdido das ilhas que ama. Alguém já observou que, a despeito de sua origem irlandesa, tanto Wilde quanto Morrissey se tornaram mais ingleses que os próprios ingleses.
Se se pensar naquela afirmação atrevida de Mark Simp­son – “o pobre Oscar foi apenas um protótipo inicial fracas­sado e um pouco obeso de Morrissey” – do ponto de vista da capacidade de gerar escândalo ou ultraje, ela não se sustenta. O pobre Steven é que pareceria uma fotocópia mal tirada de Wilde. No entanto, se se pensar em Morrissey como alguém que persegue o ideal estético wildiano de fusão entre vida e obra, entre homem e artista, ele surge como um discípulo particularmente feliz. É graças a esse sucesso, aliás, que mul­tidões o veneram no mundo ocidental, como exemplo de coe­rência dentro dessa incoerência geral que nos torna humanos.