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sexta-feira, 1 de março de 2024

Sexo pago II

A hipocrisia, é ou pode ser
a homenagem que o
vício presta à virtude.
Mas, sem essa homenagem,
as sociedades humanas seriam lugares
inóspitos para habitar.

Algo condenável moralmente
não significa legalmente proibido...
A vida tem muitta
e muitas ironias..
Alguém vender o corpo
para fins sexuais,
não constitui ameaça a ninguém e uma forma
de sermos tratados como um meio, não como um fim,
e há a insuperável sabedoria sobre a natureza humana, que diz que a prostituição
é também a mais velha vocação.
O amor não deveria estar à venda,
embora seja sempre possível dizer
de que a única diferença entre sexo pago
e sexo grátis
é que sexo grátis,
normalmente, fica mais caro.
Então cada um sabe de si
na forma como usa e abusa
da própria liberdade:
quem somos nós para impor a terceiros
nossos pontos de vista
moralistas e repressivos.
Calma.
A liberdade individual termina quando
começa a liberdade dos outros..
Certo.
Mas melhor dizer que a liberdade individual
termina quando está em causa uma vida humana.
a do próprio ou a de terceiros.
Aborto, eutanásia, suicídio assistido, pena de morte,
não contém comigo alguma vantagem para a a liberação.
Mas contém comigo para o resto.
E o resto, lamento informar,
inclui a prostituição também.
Sim, eu sei, que a prostituição degrada as mulheres,
alimenta o tráfico de seres humanos
e deve ser reprimida pelas autoridades.
Maupassant ou Flaubert, escritores
construíram o melhor da literatura francesa
no conforto dos bordéis.
Vender o corpo para fins sexuais
embora moralmente condenável,
não constitui uma ameaça para ninguém.
A minha vida e mesmo a minha liberdade
não estão ameaçadas se a vizinha
do lado gosta de receber cavalheiros.
Tolerar a prostituição significa
apenas isso: tolerar.
O fato de algo ser moralmente condenável
não significa que deva ser legalmente proibido.
"Amante a Domicílio", de John Turturro, é um filme, como se diz, "delicioso". Nos Estados Unidos, uma série de artigos celebraram a "descoberta" de que existiria um "lado bom" da prostituição.
Em várias entrevistas, Turturro (que escreve, dirige e atua junto com Woody Allen, Sharon Stone, Vanessa Paradis e Sofia Vergara, todos notáveis) levou a conversa por esse lado: "Há coisas positivas no que fazem os trabalhadores do sexo". Por exemplo, Avigal, oprimida e entristecida pela viuvez e por sua própria tradição religiosa, redescobre a "magia" do amor graças a Fioravante, o gigolô. E é transando com ele que a Dra. Parker se permite enfim mandar o retrato do marido à merda.
A consagração dessa visão do filme veio com um artigo de Karley Sciortino no "Guardian". Karley Sciortino escreve sobre sexo para "Vice" e para "Vogue", além de manter um (ótimo) blog, "Slutever" (sempreputa). Sciortino recorreu a Camille Paglia para lembrar que "moralismo e ignorância" são responsáveis por nossos estereótipos sinistros da prostituição e confirmar que Turturro nos mostrou o que há de positivo nela.
No Brasil, estranha-se menos que a prostituição possa ter algum lado "bom", mesmo que seja pela ideia machista e idiota de que ela serviria para a iniciação dos garotos (que, aliás, não precisam mais disso há tempos).
Mas, nos EUA, a coisa é diferente: com a exceção de Nevada, prostituir-se e contratar os serviços de uma ou de um prostituto são condutas punidas por prisão e multa. Isso, sem falar no que acontece com quem "promove a prostituição" (o que vai desde ser cafetão até alugar um apê a quem exerça a profissão). Enfim, em 2007, Eliot Spitzer se tornou governador do Estado de Nova York por ter sido um promotor severo contra as prostitutas e, em 2008, ele perdeu o governo por ter se relacionado, justamente, com prostitutas.
De fato, imaginar que a prostituição seja proibida em Nova York é uma piada. Mas a legislação reflete pensamentos comuns. Numa pesquisa-brincadeira de 2008, em Chicago, 200 clientes aceitaram falar de por que frequentavam prostitutas: 83% declararam que eles eram viciados e 40% afirmaram que só procuravam prostitutas quando estavam bêbados. A maioria acreditava que as prostitutas exercem sua profissão porque foram abusadas na infância. Em suma, clientes e prostitutas (ou prostitutos), todos doentes!
Não vale acusar o proverbial puritanismo dos EUA. Na própria França, ainda este ano, tem chances de ser aprovada uma lei que ("para acabar com a prostituição" —hello?) vai criminalizar o cliente.
Enfim, constata-se que existe um tabu sobre o sexo pago.
Uma hipótese, para explicá-lo, é o seguinte círculo vicioso: 1) recusamos a ideia de que exista uma fantasia sexual que envolve a troca de dinheiro, 2) concluímos que, portanto, a prostituição só acontece por necessidade absoluta de quem se prostitui, 3) queremos abolir a prostituição (de fato ou mentalmente) porque não queremos que existam diferenças econômicas que possam induzir alguém a vender sua intimidade.
O problema é o pressuposto: por que recusaríamos a ideia de que existam fantasias sexuais que envolvem a troca de dinheiro? Talvez por elas serem quase sempre fantasias de dominação, e muitos que gozam sonhando com a distribuição do poder preferem não saber exatamente do que eles estão gozando.
Em outras palavras, o dinheiro organiza fantasias eróticas, mas ele é presente demais na nossa vida social (inclusive nas relações de casal, entre parentes, amigos etc.) para que a gente se permita reconhecer esse efeito de sua circulação.
Nota: não é necessariamente quem paga que gosta de dominar. Certo, há os que curtem comprar amantes ou mulheres ou maridos. Mas também há os que pedem para ser explorados e, nas salas de bate-papo, se apresentam assim: acabe com a minha vida!, quero ser chantageado!
Achamos "Amante a Domicílio" "delicioso" porque ele confirma nossa crença (esperança?) de que a troca de dinheiro nas relações seja indiferente (no filme, apaixonamentos, renúncias, generosidades e pequenezas, tudo acontece como se ninguém estivesse pagando ninguém).
Será, então, que Turturro nos propõe uma ilusão? Talvez. Mas é a mesma ilusão na qual vivemos: nas nossas relações de cada dia, sempre tentamos esquecer o "erotismo" silencioso das trocas financeiras